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A transição ecológica precisa de novos sujeitos sociais e mais imaginação democrática (por Gerson Almeida)

 A transição ecológica precisa de novos sujeitos sociais e mais imaginação democrática (por Gerson Almeida) 

O mundo desejado só poderá ser construído se o controle de renda e poder que a desigualdade produz for rompido





Na COP27, Lula destacou que a emergência climática afeta a todos, mas seus efeitos recaem com maior intensidade sobre os mais vulneráveis. Foto: Ricardo Stuckert

Gerson Almeida (*)

A cidade é uma promessa de vida melhor. Os homens juntam-se para viverem na cidade e ali permanecem a fim de “viver a boa vida”, disse Aristóteles [1], que compreendia a cidade como uma associação formada para o bem viver.  

Por sua vez, Mumford [2] afirma que o impacto do exercício de experiências compartilhadas que a vida nas cidades oportunizou, recompôs a vida aldeã dos camponeses num padrão mais complexo e instável, que resultou da   contribuição dos diferentes tipos que passaram a viver nas cidades, como o mineiro, o lenhador, o pescador, o mercador, o soldado, o sacerdote, o engenheiro, etc. Cada qual “levando consigo os instrumentos, as habilidades e os hábitos de vida formados sob diferentes circunstâncias”. 

Para ele, foi essa complexidade que possibilitou uma “enorme expansão das capacidades humanas em todas as direções” e mobilizou o potencial humano ao ponto de produzir uma “explosão de inventividade”. 

Ou seja, mais do que qualquer outro fator, é a interação inédita entre pessoas com diferentes experiências de vida, culturas, vivências e classes sociais que tornou a cidade uma novidade transformadora. Uma experiência humana tão significativa que não pode ser compreendida apenas na sua dimensão econômica e material, pois ela produziu condições inéditas para a “invenção de direitos e de inovações sociais” [3] que elevaram os desejos e as possibilidades humanas.  

É muito importante não perdermos de vista essas maravilhosas potencialidades e realizações da vida nas cidades para que possamos enfrentar os imensos desafios presentes, entre os quais se destacam o crescimento das desigualdades e o aquecimento global. Ambos com consequências civilizatórias regressivas já amplamente demonstradas. 

São situações tão graves que estão distanciando a vida na maioria das cidades do sonho da “boa vida”, estimulando uma sensação de impotência e fomentando posturas sociais conformistas. Um ambiente propício de ser capturado por alternativas não democráticas e salvacionistas, que historicamente nunca deram bons resultados.

Isso coloca para o campo democrático e humanista o desafio de encontrar maneiras de fazer com que o espaço público recupere a vitalidade criativa necessária para reaproximar a vida nas cidades da promessa de uma vida boa, que sempre lhe caracterizou. 

Entre tantas coisas, isso requer que as estruturas institucionais dos governos tenham uma configuração institucional mais permeável à recepcionar a inteligência dos cidadãos, incorporando-os nos processos de deliberação e conferindo maior legitimidade política e social às decisões.  

Um descompasso preocupante  

Essa permeabilidade das estruturas governamentais é necessária para conseguirmos superar o enorme descompasso entre a velocidade da ocorrência de eventos climáticos extremos e a vagarosa implementação dos acordos feitos para mitigar os efeitos do aquecimento global, assim como para enfrentar as desigualdades. Tanto o aquecimento global, quando a desigualdade obscena atual foram aceleradas nesse período de ultraliberalismo e são desafios cuja relevância transcende conjunturas e adquirem dimensão civilizacional. Apesar de haver muitas iniciativas notáveis de resistência em curso, nenhuma ainda conseguiu alcançar a escala e o ritmo necessários para se constituir em contraponto efetivo e evitar que os piores cenários previstos aconteçam. 

Os encontros internacionais de cúpulas, como as Conferências do Clima das Nações Unidas (COP) tem sido capaz de produzir documentos com ótimos diagnósticos, mas a extraordinária dificuldade em chegar a acordos só é superada pela dificuldade de cumpri-los. Isso gera crescentes desconfianças quanto ao efetivo compromisso dos governos em mudar o curso atual. Isso porque não lhes faltam instrumentos legais, nem conhecimento sobre as causas do aquecimento global e das desigualdades, nem apoio social para. Falta apenas determinação política e compromisso com a mudança de rumos.   

A preocupação com a falta de ação foi expressa na fala do presidente da COP26, Alok Sharma, ao alertar as autoridades que, “nem durante a pandemia as mudanças do clima tiraram férias e todas as luzes do painel climático estão vermelhas”.

As cidades são parte do problema e da sua solução

Mesmo que os governos nacionais ainda sejam os principais protagonistas nos acordos globais e possuam um papel imprescindível para que as suas metas sejam alcançadas, as cidades possuem um papel reconhecidamente relevante na produção de alternativas e são nelas que podemos encontrar as melhores iniciativas, tanto no combate ao aquecimento global, quanto das desigualdades. 

Além de consumirem cerca de 70% dos recursos disponíveis e a maior parte da energia gerada, elas emitem grande parte dos gases responsáveis pelo efeito estufa e cada vez mais são estratificadas pelas desigualdades, algo que a própria Agenda 2030 das Nações Unidas reconhece ao afirmar que  “o desenvolvimento e a gestão urbana sustentável são cruciais para a qualidade de vida de nosso povo” e ao realçar que a sustentabilidade ambiental e a desigualdade social são facetas de um mesmo desafio.   

Pois bem. Essa lentidão na implementação das ações previstas nos acordos internacionais suscita uma pergunta fundamental: quais atores precisam ampliar seu protagonismo no processo de tomada de decisão para podermos acelerar a transformação dos objetivos e metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas em programas e políticas públicas na direção da transição ecológica? 

Essa resposta, em grande medida, está sendo construída nas milhares de práticas de democracia participativa em curso no mundo, notadamente nas práticas de Orçamento Participativo. 

É isto que nos indica o recente estudo feito pela OIDP [4], que, depois de analisar 4400 projetos financiados pelos OP’s em dez cidades, em diferentes contextos, identificou mais de 900 projetos com impacto na mitigação e/ou adaptação às mudanças climáticas, evidenciando que a “participação do cidadão pode e deve ser uma ferramenta transformadora no combate às alterações climáticas”. 

Algo muito interessante, pois o OP foi concebido precisamente para ser uma alternativa ao déficit de participação dos arranjos tradicionais de democracia. Essa capacidade de renovação e expansão para os mais diferentes lugares no mundo e a sua eficácia na produção de alternativas efetivas no combate às alterações climáticas, desafia as repetidas alegações sobre o desinteresse dos cidadãos em participar da vida pública. 

Tanto que as diferentes práticas de OP em curso, já envolvem milhões de pessoas em todos os continentes e vultuosas somas de recursos financeiros [5], alcançando cidades do porte de Paris, Madrid, Lisboa, Bolonha, Nova York, Seul, Chengdu e tantas outras. 

Outra novidade é o fato de o OP ter deixado de ser uma prática exclusiva da gestão nas cidades e ter alcançou o âmbito nacional, como em Portugal e Moçambique, assim como a interessante experiência ocorrida no Peru, a partir de uma lei nacional. 

Outra novidade desenvolvida nos últimos anos são as práticas de OP voltadas para as mulheres, para os jovens, para os idosos, para o meio ambiente e para instituições de ensino, de saúde, etc. O que conferiu ao Orçamento Participativo uma dimensão e escala impossíveis de imaginar quando do seu surgimento e confirmam a sua versatilidade e capacidade de adequação às diferentes realidades. 

Esse interesse de participação dos cidadãos, notadamente em relação às temáticas ambientais, à desigualdade e ao enfrentamento da crise climática é identificado em todas as pesquisas sobre o tema. 

Por exemplo, uma pesquisa encomendada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Brasil, em parceria com o programa de Comunicação de Mudança Climática da Universidade de Yale, feita em 2021 [6], apontou que 77% dos brasileiros acham que é importante proteger o meio ambiente, mesmo que isso signifique menos crescimento econômico; além disto, 92% acham que o aquecimento global está acontecendo e 72% acreditam que ele pode prejudicar – e muito – a atual geração. 

Outro exemplo é a pesquisa feita pela Economist Intelligence Unit (EIU) a pedido do WWF, que mediu o ativismo digital sobre a questão ambiental ao longo de quatro anos (2016-2020), em 54 países (80% da população mundial). Neste período, houve um crescimento contínuo em pesquisas na internet por produtos sustentáveis (71%), um aumento de tuítes relacionados a causa (82%) e o volume de notícias que abordam o tema e os protestos contra a destruição da natureza, cresceu (60%). Chama a atenção neste estudo o crescimento registrado na Ásia, principalmente na Índia (190%), Paquistão (88%) e Indonésia (53%) [7].

A pedagogia social do OP

Um aspecto que não pode ser negligenciado é o caráter pedagógico dos OP’s. 

O aprendizado de reunir, discutir e organizar uma ordem de prioridades comuns, em razão da insuficiência de recursos para atender todas as demandas ao mesmo tempo, é um efetivo processo de pedagogia social e política. 

Ao participar dessas experiências, as pessoas precisam exercer um sofisticado processo de acordos, saber estabelecer critérios para hierarquizar as prioridades e projetar ao longo dos próximos anos a sequência de investimentos.

Esse aprendizado é uma das maiores fortalezas dos OP’s, pois todos os setores sociais integrados nos processos de discussão e deliberação trazem consigo o seu conhecimento acumulado e, sobretudo, acessam o poder de incidir sobre a aplicação da parcela de recursos colocados em discussão, algo que lhes é sistematicamente negado e alimenta a ideia conservadora de que há temas que são complexos demais para serem objeto de deliberação de todos. Esse é um dos pilares que sustentam a ideologia de segregação social, cultural e econômica que produz e reproduz as desigualdades.   

O reconhecimento das comunidades atuantes nos OP’s como portadoras de um conhecimento valioso, que já existia, mas não era reconhecido, torna o espaço público mais confiável e atrativo à participação e mais próximo da vida concreta das pessoas, mostrando a importância da noção da ecologia dos saberes, desenvolvida pelo professor Boaventura Santos [8]

A participação precisa de instituições mais permeáveis

Os 17 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODS) e suas 169 metas – das quais mais da metade possuem relação com políticas urbanas, servem como um verdadeiro guia para a nossa reflexão e ação. 

Esses objetivos e metas nos remetem a um modelo de cidade que reduza as desigualdades sociais, regionais, econômicas, que valorize nossa diversidade cultural, incorpore os cidadãos nos processos de deliberação e torne as cidades lugares de promoção da qualidade de vida para todos. 

Há alguns critérios que a experiência tem mostrado como decisivos para a conquistar a confiança das pessoas nesses processos: a existência de regras claras, recursos previamente definidos, espaço de discussão e acolhimento para as diferentes opiniões, execução dos acordos realizados e compromisso dos governos em respeitar as decisões. 

Outro indicador importante é a permeabilidade das estruturas institucionais à participação da população, pois, em grande parte, isso ajuda a definir as regras que irão influenciar a “configuração dos processos participativos. Questões como: a) quem participa (inclusividade), b) em que condições (igualdade), c) qual o poder real (efetividade), d) quais os temas discutidos (distributivismo), e) qual o nível de controle do processo (accountability), são elementos analisados” [9].

Mesmo que os orçamentos participativos não esgotem o conceito de democracia participativa, há uma interação virtuosa entre ambos. É na democratização do poder de decisão sobre os recursos que a democracia participativa inova e ganha as condições necessárias para alterar a concentração de renda e poder cada vez mais subtraídos das maiorias.

Orçamento participativo e a transição socioambiental

O desenho institucional por si só, no entanto, não é capaz de nos colocar no caminho da transição ecológica, pois esse avanço exige compreendermos a cidade como um compósito social, político, cultural e ambiental, o que significa dizer que a gestão urbana é um desafio ao mesmo tempo social e ambiental, um desafio socioambiental.

O que requer a integração das políticas públicas e o conhecimento dos fluxos naturais e construídos que configuram o território da cidade e asseguram o abastecimento dos bens imprescindíveis para a vida, como água, alimentos, energia, qualidade do ar, assim como emprego, saúde, educação, habitação, cultura, mobilidade, etc. 

Na realidade das cidades, os bens naturais e construídos se entrelaçam de tal forma que, até metodologicamente é difícil de distingui-los. Esse conjunto de sistemas de engenharia que o homem vai superpondo à natureza, é que dão às cidades a sua configuração territorial, de acordo com Milton Santos [10]

Essas redes construídas passam a ser tão elementares ao cidadão urbano quanto os demais elementos “naturais”, constituindo uma realidade que vincula de forma indissociável sociedade e natureza. Creio que essa compreensão seja o ponto de partida para pensarmos políticas e ações comprometidas com uma transição ecológica.  

É claro que os OP’s não são uma panaceia. 

Mas o inestimável e já muito robusto trabalho de colaboração, estudos, incentivo e financiamento às práticas de OP’s que estão sendo realizados pelos governos comprometidos com os processos de democratização das decisões. O trabalho das redes como o Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP), a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), o Fórum das Autoridades Locais pela Inclusão Social e Democracia Participativa (FAL), e a Rede Mercocidades, mostram que a transição socioambiental está dando passos concretos em cada uma dessas milhares de experiências. 

Não há diversidade ambiental, sem diversidade social

São tantos os exemplos de boas práticas e respostas eficazes produzidas a partir dos processos democráticos que incorporam novos sujeitos nos processos de discussão e deliberação, que podemos afirmar sem receio de que as alternativas para a mudança de rumo já estão em curso. 

O esforço para aumentar a integração e a colaboração entre essas experiências, é fundamental para que os processos democráticos ganhem a escala narrativa de alternativa efetiva para superar o descompasso no cumprimento dos acordos internacionais e suas metas. Os resultados das práticas de democracia participativa são muito relevantes, mas ainda não ganharam o espaço devido nas discussões que buscam afirmar alternativas.

A diversidade, tanto ambiental, quanto social, devem ser compreendidas como orgânicas uma à outra. Assim, poderemos levar à risca a diretriz das Nações Unidas, de “não deixar ninguém para trás”. Essa deve ser a nossa principal guia nesta travessia rumo à transição ecológica, sempre que tivermos dúvidas sobre qual decisão tomar, pois apenas podem ser consideradas sustentáveis, aquele “conjunto de práticas, portadoras da sustentabilidade no futuro”, o que reafirma a relação inextricável entre as ações realizadas no presente com a construção do mundo desejado.

Basta observar o rumo distópico para o qual o a degeneração autoritária do ultraliberalismo está conduzindo a humanidade para perceber que o mundo desejado só poderá ser construído se o controle de renda e poder que a desigualdade produz seja rompido. E isso só será possível com a radicalização dos processos democráticos para que dessa dinâmica emerja a força criadora da transformação que, segundo Paulo Freire, todo o ser humano é dotado.

Notas

[1] ARISTÓTELESPolítica. São Paulo, SP: Martin Claret, 2007.

[2] Mumford, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. SP: Martins Fontes, 1998.

[3] Acselrad, Henry (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001

[4] Cabannes, Yves (org.), 2020: Contributions of Participatory Budgeting to climate change adaptation and mitigation: Current local practices around the world & lessons from the field. Disponível em: https://www.oidp.net/pt/content.php?id=1716 

[5] Cabannes, Yves: Another city is possible with participatory budgeting / Yves Cabannes (ed); foreword, Anne Hidalgo, Mayor of Paris

[6] Disponível em : https://www.percepcaoclimatica.com.br/

[7] “Um Ecodespertar: Medindo a consciência global, engajamento e ação pela natureza“,  Disponível em: https://wwfbr.awsassets.panda.org/downloads/wwf_eco045_report_on_nature_pt.pdf

[8] Santos, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008. 

[9] Fedozzi, Luciano, Ramos, Marilia Patta e Gonçalves, Fernando Gonçalves de. Orçamentos Participativos: variáveis explicativas e novos cenários que desafiam a sua implementação. Disponível em: file:///C:/Users/Gerson/Downloads/78505-309789-1-PB.pdf

[10] Santos, Milton. A urbanização Brasileira. São Paulo: EDUSP, 2005

(*) Sociólogo, foi secretário de meio ambiente de Porto Alegre e secretário nacional de articulação social do segundo governo de Lula.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

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