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A segunda família dos haitianos: grupo de voluntários organiza cursos e doações no Centro Vida

A segunda família dos haitianos: grupo de voluntários organiza cursos e doações no Centro Vida

Celebração de Natal dos migrantes no Centro Vida. Foto: Luiza Castro/Sul21
Débora Fogliatto
No último sábado (22) um pavilhão do Centro Humanístico Vida, na zona norte de Porto Alegre, recebeu dezenas de imigrantes haitianos para uma festa de Natal com uma proposta diferente. O evento, organizado pelo grupo de voluntários Família Imigrante e pela Fundação Maçônica Educacional, teve como objetivo lançar parcerias para cursos profissionalizantes voltados à comunidade haitiana para 2020. 

Desde que uma grande leva de imigrantes vindos da ilha caribenha chegou a Porto Alegre, em 2015, o Centro Vida funciona como uma espécie de segundo lar para eles. Inicialmente, inclusive, um grupo ficou hospedado no local, até se estabelecerem e conseguirem passar a pagar aluguel. Até hoje, a partir de voluntários, lá são ministradas aulas de português para imigrantes e arrecadadas doações de roupas e mantimentos encaminhadas a eles. 
Para a festa, além das cestas básicas já geralmente doadas, foram providenciadas ainda aves natalinas, além de cachorro-quente e bolo para o almoço dos participantes. A ideia do evento veio de Neusa Batezini Scherer, voluntária considerada uma “mãe” pelos haitianos. Desde 2015, ela é uma das principais organizadoras da rede de apoio que fornece auxílio e doações para os imigrantes. Na ocasião, era auxiliada por outras mulheres voluntárias, também integrantes do Família Imigrante, grupo que atualmente conta com cerca de 10 pessoas. Ao fazer sua fala no evento, ela se emociona ao citar o carinho que sente pelos haitianos: “vocês são a minha família”, afirma.
Neusa Batezini Scherer, voluntária no Centro Vida. Foto: Luiza Castro/Sul21
“Desde 2015, fazemos entrega de alimentos, roupas, doações para casa, como utensílios e móveis. Mas fica uma certa insatisfação de ver que eles estão chegando aos montes e não estamos conseguindo fazer com que eles se aperfeiçoem profissionalmente, façam cursos para aprender algum ofício por exemplo”, relata Neusa, que também é técnica de enfermagem em um posto de saúde no bairro Sarandi, o mesmo onde fica localizado o Vida. 
No local, há uma sala onde se concentram as doações conseguidas pelos voluntários. A partir de brechós, arrecadam dinheiro, além das roupas que doam diretamente para as famílias. “Aceitamos doações, tudo que vier vem bem. Brinquedos, roupas… Na verdade, alimentos é o que mais temos dificuldade. A gente ganhou muito alimento e mesmo assim tivemos que comprar ontem. Tu faz uma média, são 150 famílias, cada uma ganha 4kg de arroz, dá 600 kg de arroz”, calcula. Gestantes e mães de bebês também recebem caixas de leite e achocolatado. 
O Haiti é um pequeno país caribenho, situado na América Central
Ela cita especialmente o caso das mulheres – na festa de Natal, a maioria das pessoas eram mulheres com seus filhos –, as quais muitas vezes ficam em casa com as crianças e não aprendem a língua portuguesa ou algum ofício. Por isso, a ideia é fornecer cursos como corte e costura, artesanato, manicure e pedicure, cabeleireira, assim como informática. No Centro Vida, já há computadores da Fundação Gaúcha de Trabalho e Ação Social (FGTAS), à qual o Vida é ligado. 
Desde que começou a frequentar o local para ajudar os imigrantes, Neusa conta que nunca mais conseguiu se desvincular deles. Atualmente, cada uma das 150 famílias que frequenta a instituição a conhece pelo nome, e ela da mesma forma conhece a maioria deles. É madrinha oficialmente de diversas crianças, e todas demonstram carinho ao cumprimentá-la. Espírita, tem afilhados tanto na igreja católica quanto evangélica, frequentada pela maioria dos haitianos. 
Reunir alimentos para todos os migrantes é uma das dificuldades dos voluntários. Fotos pro especial de migração. Foto: Luiza Castro/Sul21
Os pequenos, aliás, em geral demonstram fluência no português, inclusive comunicando-se entre si na língua. Segundo Neusa, todos em idade escolar frequentam escolas da região. Ela conta que, há poucas semanas, chegou uma haitiana que não sabia nada de português para tentar conversar com ela, acompanhada de seu filho de 4 anos. “O menino de 4 anos traduzia para a mãe o que eu estava falando, ele já falava as duas línguas! Criança têm facilidade de aprender a língua mesmo, para os adultos acaba sendo mais difícil”, aponta. 
“A gente tem um carinho, acaba se aproximando, principalmente as crianças, e é fantástico”, afirma a voluntária. Ela se preocupa que os haitianos consigam se sustentar para que possam pagar aluguel, e cita casos em que eles acabaram morando em ocupações. A Ocupação Progresso, na zona Norte, abrigava diversas famílias oriundas do Haiti, e acabou despejada em 2018. Neusa teme que o mesmo ocorra com outros migrantes que vivem na mesma situação, investindo dinheiro em moradias que podem acabar sendo incertas. 
Mesmo que a situação não esteja tão fácil para os imigrantes que já estão aqui – eles relatam nem sempre conseguir empregos rapidamente e precisar contar com a ajuda dos voluntários para se manter –, seguem chegando haitianos em um ritmo bastante grande. Apenas durante o sábado, duas haitianas recém-chegadas procuraram, com o auxílio de outros imigrantes que já falam português, as voluntárias presentes no local para se cadastrarem e receberem auxílio. Segundo Neusa, mesmo que o grupo tenha conseguido empregos para muitos imigrantes, ainda há diversos desempregados, dependendo exclusivamente da ajuda fornecida. 
“Chegaram quatro haitianos essa semana que nos procuraram. A maioria dos que nos procura são haitianos. Quando eu conheci os imigrantes, havia senegaleses aqui também, quando eles ainda estavam hospedados aqui. Mas os senegaleses têm uma rede de apoio interna, se estruturam sozinhos. Enquanto os haitianos estão vindo do jeito que conseguem, quando conseguem sair do país gastam todo dinheiro para chegar aqui, sem nenhuma estrutura, sem dinheiro, sem falar português. É muito complicada a situação deles”, lamenta Neusa. 
Recomeçando no Brasil
A dificuldade de viver no Haiti, que faz com que os cidadãos do país venham para o Brasil mesmo sem estrutura, é reiterada pelo imigrante Joseph Presnoir. Ele vive em Porto Alegre há cinco anos e trabalha como segurança, mas suas duas filhas, de 16 e 19 anos, permaneceram no país de origem. “Todo mês envio dinheiro para elas, senão não conseguem sobreviver, porque a vida lá é complicadíssima mesmo. Depois do terremoto, a situação do Haiti vem piorando”, conta. 
Joseph Presnoir chegou a Porto Alegre há cinco anos. Foto: Luiza Castro/Sul21
No Haiti, Joseph trabalhava como professor, mas não conseguia mais emprego no país, o que o motivou a migrar. Assim, consegue enviar dinheiro para as filhas. Mesmo longe, aponta a importância de conseguir sustentá-las. O próximo plano é conseguir trazê-las para o Brasil, o que Joseph está tentando fazer a partir da embaixada brasileira no Haiti. 
Além de trabalhar como segurança, o haitiano é voluntário no Cibai, onde lida com as documentações não só de conterrâneos, mas de todos os estrangeiros atendidos pela entidade. Ainda, administra um grupo de WhatsApp com centenas de integrantes, a partir do qual auxilia imigrantes a entrarem no mercado de trabalho. Com a ajuda de outros voluntários, fica atento às oportunidades e, pelo grupo, pensa em possíveis candidatos, os contata e acompanha o processo até o fim da seleção. 
Joseph acredita na importância dos trabalhos realizados por entidades voluntárias, como o Cibai e o grupo Família Imigrante. “O que eu mais gosto aqui no Rio Grande do Sul é a maneira como os brasileiros sabem receber estrangeiros”, garante. Logo que chegou a Porto Alegre, ele próprio foi aluno de português no Centro Vida, e neste sábado, já fluente na língua, foi o mestre de cerimônias da comemoração no local. “A Neusa e os professores que dão curso de português para nós ajudam muito a melhorar a nossa vida aqui”, resume. 
Para Yolene Joseph, Neusa é como uma mãe. Ela é uma das imigrantes haitianas cujo filho é apadrinhado pela voluntária. O pequeno David, nascido no início de dezembro, é o mais recente afilhado de Neusa. “Ela nos ajuda em tudo. Se eu tiver cinco filhos, ela vai ser madrinha dos cinco. Ajuda até demais. Mesmo sem nos conhecer, ela ajuda”, garante. 
Yolene Joseph convidou a voluntária Neusa para ser madrinha de seu filho nascido no início de dezembro. Foto: Luiza Castro/Sul21
Yolene migrou com o marido, o qual estava trabalhando no dia da festa, e o casal morou em Manaus antes de se mudar para Porto Alegre. Ela relata preferir a cidade gaúcha, o que também atribui à ajuda recebida pela equipe de voluntários. “Eu gosto mais daqui. Todos nós contamos muito com a ajuda que recebemos do Centro Vida”, afirma. 
Inserção no mercado de trabalho
A pesquisadora Ana Julia Guilherme analisou, em sua dissertação de mestrado em Sociologia pela UFRGS, as estratégias e trajetórias de trabalho dos imigrantes haitianos e senegaleses em Porto Alegre, a partir de entrevistas com diversos imigrantes destas nacionalidades. Ela concluiu a pesquisa em 2017 e relata que, no período em que estava realizando o trabalho, muitos dos entrevistados chegaram ao Rio Grande do Sul a partir da política que promoveu o deslocamento do Acre para outros lugares do Brasil, de ônibus, devido à situação grave encontrada naquele Estado pela chegada massiva de imigrantes. 
Além disso, o RS também se tornou um dos principais estados a receber imigrantes devido a “suas indústrias, oportunidades e cidades mais tranquilas. Alguns imigrantes optaram pelo Estado após passar um tempo em São Paulo, Acre ou outros estados”, explica a socióloga. Ainda, menciona a criação de redes: ou seja, uma vez que alguns imigrantes se estabelecem em uma cidade, outros oriundos do mesmo local tendem a chegar por associação. 
Famílias haitianas encontram suporte na chegada a Porto Alegre no Centro Vida . Foto: Luiza Castro/Sul21
“A criação de redes acarreta uma determinada dinâmica migratória, em que se reproduzem estratégias, expectativas, sonhos, os quais muitas vezes não saem como o esperado. Também, devemos levar em conta outros aspectos, como as relações do Brasil com o Haiti, com o histórico das tropas brasileiras na MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti), entre outros fatores conjunturais”, aponta Ana Julia sobre a opção dos haitianos pelo país. 
Segundo a pesquisadora, tanto os haitianos quanto os senegaleses que chegaram ao Rio Grande do Sul na última década encontram algumas dificuldades ao se inserir no mercado, precisando aceitar trabalhos pesados, com salários baixos, além de enfrentar xenofobia e racismo. Ela menciona ainda que, no início dos novos fluxos migratórios para o Brasil, representantes de empresas iam até o Acre oferecer emprego para os imigrantes, o que não acontece mais atualmente, devido a mudanças no contexto político e econômico do país. 
Os imigrantes costumavam receber, à época em que ela realizou a pesquisa, em torno de R$ 1.000 por mês, em média. Em geral, eles relataram saber de seus direitos trabalhistas e outros benefícios, preferindo assim trabalhar de carteira assinada, especialmente os haitianos. Dentre os haitianos entrevistados por Ana Julia, havia os que trabalhavam como frentista, auxiliar de limpeza, auxiliar de estoque e porteiro, além de alguns desempregados. 
Foto: Luiza Castro/Sul21
Visto e permanência
Os cidadãos haitianos têm direito a obterem um visto humanitário para permanecerem no Brasil, o qual foi elaborado pelo governo brasileiro para atender à grande demanda de haitianos que chegavam como solicitantes de refúgio no país. Apenas em 2015, quase 50.000 imigrantes haitianos solicitaram refúgio, mas ,pelas regras internacionais da Organização das Nações Unidas, eles não cumprem os requisitos para se enquadrarem como refugiados.
Assim, em 2012 foi desenvolvida a política do visto humanitário, a partir da Resolução Normativa nº 97 , promulgada pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que determina que qualquer haitiano que não tenha antecedentes criminais em seu país de origem possa solicitar visto permanente para residir no Brasil, por motivos humanitários. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, entre 2012 e maio de 2016, foram emitidos 48.361 vistos do tipo para cidadãos do Haiti. 
Em 2017, com a nova Lei de Migração, a acolhida humanitária foi incluída como medida prevista na legislação brasileira. Já em 2019, foi publicada uma portaria que facilita a obtenção de visto pelos haitianos, prevendo que eles possam solicitá-lo apresentando apenas os documentos que tenham consigo, e o restante das informações serão procurados pelas próprias autoridades brasileiras. 
Neusa e o mais recente afilhado. Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
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