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Responsabilidade e informalidade na crise da RBS: um assalto na decadência - por Tarso Genro

 

Responsabilidade e informalidade na crise da RBS: um assalto na decadência.

 


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Cofre da agência do Banco do Brasil que foi alvo de criminosos em Criciúma | Foto: Divulgação/Polícia Civil

 

Tarso Genro (*)

O episódio da “rebelião de anunciantes” contra a RBS, na semana que findou, é um dos eventos mais significativos e paradigmáticos do jornalismo contemporâneo no Brasil – no que se refere à relação das empresas de comunicação com seus financiadores e leitores – precisamente porque liga – de maneira solar – a crise da democracia liberal-representativa que vivemos, com a crise do jornalismo pós-moderno, que lhe acompanha. O assalto de Criciúma não foi um dos atos criminosos mais complexos realizados pelo crime organizado no Brasil, mas certamente passará para a História pelos efeitos que causou no mundo das “mídias” dominantes no Brasil e pela intervenção -aberta e desavergonhada- dos empresários nas questões relacionadas com o direito à livre circulação da opinião.

O mais importante do episódio é que a disputa não foi a partir de um conflito suscitado entre “esquerda” e “direita”, mas o foi entre a própria base política da direita conservadora (parte dela fascista), sobre juízo de oportunidade a respeito de comentários, proferidos no diálogo entre um jornalista reconhecidamente adepto dos métodos bolsonaristas de governar, e uma jornalista politicamente moderada, ambos no cumprimento das suas funções e prerrogativas profissionais

O tema do impasse foi o tratamento lúdico -no espaço hoje “natural” – “entre a responsabilidade de informar” e a “informalidade personalíssima”, que atualmente assola a grande imprensa. Seu lugar é aquele que  trata -com o mesmo grau de (in)dignidade informal- dos fatos que versam sobre os cachorrinhos dos apresentadores, outras curiosidades domésticas e as roupas usadas pelos colegas mais elegantes, tudo noticiado no horário nobre que mistura a morte de milhares com a vida pessoal brilhante de cada um.

Como se sabe, ambos – clientes e empresas de comunicação sempre foram, por designação divina, os campeões da defesa da liberdade (sob controle)  de opinião e da liberdade de imprensa (relativa), ordinariamente financiada pelo Estado e pelo mercado: aquele com os anúncios públicos e  este com as suas múltiplas formas de sonegação e evasão. Os jornalistas, portanto, formam o elo de ligação destas instituições, com seu trabalho sob liberdade vigiada, que, se lhe dá certos espaços para a realização de um  trabalho digno – como muitos o fazem – também dá grandes oportunidades aos seus sabujos mais criativos nas esferas do ódio.

A “decadência” já foi alvo de estudos e formulações, na teoria da história e na ciência política, que passaram por cabeças luminares como Toynbee, Lukács e Spengler, com diferentes premissas filosóficas. Usar esta categoria para abordar a crise do jornalismo pós-moderno não significa, portanto, uma crítica meramente política das ideologias que lhe atravessam, mas buscar seus fundamentos na vida social concreta. Por esta, a “decadência”  articula o seu discurso com o ambiente político universal – no nosso caso específico num momento da “decadência” da democracia do Estado Social – vinculando a representação política de “terceira”, emergente de um Golpe que substituiu a hegemonia das elites tradicionais, como centro político mais tradicional das classes “altas”, por aventureiros, novatos ou milicianos travestidos de políticos.

Não se trata, todavia, de buscar a ideologia dos “formadores de opinião”, no âmbito da decadência, porque estes não têm uma visão uniforme em relação aos fundamentos da crise que vivemos. Trata-se de verificar como eles precisam operar, para passar seu conteúdo – estético e gramatical – para cumprir as suas tarefas contratuais na profissão. Nesse movimento consciente é que vinculam, com maior ou menor grau de aproximação, a sua ação profissional à (sua) consciência, depositária da sua “honra subjetiva”.

Se antes, no  jornalismo político de um Carlos Castello Branco, por exemplo, -como jornalista de opinião- ou de um Adauto Novaes, como repórter grandioso, os jornalistas tinham que saber dos fatos e ter um juízo sobre os seus fundamentos, hoje os jornalistas precisam saber, sobretudo, a mando de quem eles estão falando. Não só para exercitarem uma relativa independência de consciência (dependente do seu caráter), como para fazerem  as mediações necessárias para sobreviverem na profissão.

Neste dilema, é óbvio que a sabujice bem remunerada é mais cômoda do que o exercício do espírito crítico, o que faz do jornalismo uma das profissões mais difíceis  de serem exercidas de maneira “livre”, no novo mundo do trabalho intelectual, cuja moralidade ainda não foi composta completamente.

O desmanche do jornalismo tradicional, informativo e com certa pluralidade – que  se realizava segundo os vínculos de cada grande empresa jornalística com seus financiadores e anunciantes (plurais) – hoje se articula de maneira uniforme. Esta ausência de pluralidade das grandes empresa de comunicação é que leva ao repique monótono dos dogmas neoliberais (que vem  de laços materiais e imateriais com os centros de poder mundial), cuja pauta central é a pauta do capital  financeiro e do seu controle sobre a dívida pública.

É isso que faz com que cada “formador de opinião” não dispense, na simplicidade do seu raciocínio – por exemplo –  que nas premissas das perguntas já estejam estão embutidas as “verdades” de que só as reformas neoliberais salvam o seu ideal de capitalismo. Tal postura exige, para que não haja dúvida sobre quais são as tarefas que a informação e a crítica devem cumprir, que seja integrado em qualquer raciocínio, também a falsa identidade dos fenômenos sociais e políticos com os fenômenos naturais. Estes, como se sabe, se movimentam segundo cadeias de causa-efeito, – objetivas e rigorosas – sem a intromissão de “valores”. No movimento da sociedade e nas suas disputas sempre estão presentes questões político-morais, cujas soluções se dão de forma inverso dos processos da natureza, dada a intervenção da consciência humana, herdada da evolução.

A “naturalização”, portanto, do que ocorre na sociedade, pela política negacionanista – por exemplo – enseja as pessoas  pensarem que as relações entre os indivíduos e entre grupos de interesse, são também regidas pelas leis da natureza: “seleção natural”, sem intervenção do direito e da política, darwinismo social, ausência de juízos de valor do que ocorre na economia  de mercado, políticas de eliminação do “inimigo” irrecuperável. O “caminho é único” e o resto são populismos para cooptar os fracos, aqueles não dotados do espírito “empreendedor”.

Estou muito longe de aceitar as desculpas solicitadas pelos jornalistas, pela forma grosseira com que eles trataram as dores dos atingidos pela violência criminosa em Criciúma, até porque eles não estão pedindo desculpas ao “distinto ouvinte”, mas – na verdade – aos seu patrões. Os mesmos que ajudaram a criar
esta mentalidade arbitrária e fascista dos seus anunciantes-retirantes, que agora se arvoram em censores
privados de uma liberdade pela qual nunca lutaram.

Talvez, se a empresa de comunicação pedisse desculpas, não os jornalistas, pela colaboração que deram para debilitar o Estado de Direito em nosso país – quando promoveram o Golpe contra a Democracia e a República – a gente pudesse pensar que estariam falando conosco. Mas não estão. Estão falando com as criaturas bolsonáricas que criaram, para poder jogar o país no ridículo mundial e na tragédia nacional que nos destrói.

E de mais a mais, rapidamente os dissidentes voltarão – vinculando novamente as empresas de comunicação e os anunciantes- pois eles estão necessariamente na mesma: “dinheiro acima de tudo e Bolsonaro acima de todos”. Só espero que os jornalistas não sejam demitidos por terem usado do seu pequeno espaço de autonomia para dizerem suas impropriedades. Estas, aliás, são bem menos graves do
aquelas ditas sobre as reformas de Guedes, nos editoriais da empresa, tão bolsonáricos como a maioria dos seus anunciantes-retirantes. Que fiquem em paz, se puderem.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

Créditos Sul21

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