Nazaré: a história da comunidade que foi removida para a periferia da periferia
A vida dos moradores da Vila Nazaré começou a mudar quando foi feito o anúncio de que Porto Alegre seria uma das cidades-sede da Copa do Mundo de Futebol de 2014. A notícia veio acompanhada por outro anúncio: um pacote de grandes obras na cidade. Uma delas era a ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho, que exigiria a remoção das famílias que viviam na Vila Dique, localizada ao lado do aeroporto, e das que moravam na Vila Nazaré, localizada um pouco mais adiante.
A comunidade da Dique foi a primeira a ser retirada. Entre 2009 e 2012, mais de 900 famílias foram removidas para o condomínio Porto Novo, ao lado do chamado Porto Seco, localizado na região norte da Capital. As cerca de 1.300 famílias que viviam na Nazaré começaram a ser retiradas em 2019, em ação que terminou agora, em julho de 2021. A remoção, ou “reassentamento”, como preferem dizer as autoridades municipais foi e segue sendo um processo traumático para muitas famílias, que, além de perderem espaços de trabalho e renda que tinham, também sofreram a ruptura de laços sociais e comunitários construídos ao longo de décadas.
A fotografia que abre essa reportagem, de César Lopes, da assessoria de Comunicação da prefeitura de Porto Alegre, sintetiza de certo modo uma dimensão de perda que é reivindicada por muitos moradores da Nazaré. Uma casa em ruínas, com dois cães amarrados em sua entrada, como se fossem guardiões de escombros que falam, com todos os seus dramas e precariedades, de uma história de décadas. Histórias de vida, laços comunitários e afetivos, relações com os animais…esses são fatores que não costumam entrar nas panilhas dos planejadores que formulam obras, projetos privados e políticas públicas, mas impactam a vida das pessoas e de comunidades inteiras.
No dia 12 de julho, a Prefeitura de Porto Alegre anunciou oficialmente a conclusão do reassentamento das mais de mil famílias que moravam na Vila Nazaré e a “liberação” da área para a conclusão das obras de ampliação da pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho. O prefeito Sebastião Melo definiu a conclusão do processo de remoção das famílias da área como “um marco social e de desenvolvimento”.
“Concluímos hoje um reassentamento com dignidade para as famílias, oportunizando a expansão final da pista do aeroporto, que significa movimentar a economia e a geração de empregos em Porto Alegre e no Estado”, disse Melo, em nota publicada no site da Prefeitura. “Garantimos que nenhuma família da Nazaré ficasse sem moradia e, agora, podemos entregar a área a Fraport, permitindo a conclusão das obras”, acrescentou o vice-prefeito Ricardo Gomes.
Ao todo, segundo os dados oficiais da Prefeitura, 1.011 famílias que viviam na Vila Nazaré foram removidas da área em um processo que iniciou em junho de 2019 e terminou agora, em julho de 2021. Essas famílias foram reassentadas em dois condomínios, construídos por meio do Programa Minha Casa Minha vida: o condomínio Senhor do Bom Fim, localizado no bairro Sarandi, com 364 unidades residenciais, e o condomínio Irmãos Maristas, no bairro Mário Quintana, com 1.298 unidades. Os imóveis dos dois condomínios têm dois quartos, sala, cozinha e banheiro.
A Prefeitura anunciou como prioridade dotar os dois condomínios de equipamentos e serviços públicos, inexistentes até a chegada das famílias que viviam na Nazaré, especialmente no condomínio Maristas por sua grande dimensão. “Em fevereiro, uma linha alimentadora passou a circular pelas ruas do condomínio. No começo de abril, iniciaram as obras da escola de educação infantil, que deve ser entregue ainda este ano”, anunciou o Executivo municipal no dia 12 de julho. O secretário de Habitação e Regularização Fundiária, André Machado, admitiu que a pauta da Nazaré não se encerra com o anúncio da conclusão da remoção das famílias. “Ainda temos muito trabalho junto aos moradores que deixaram a vila nos últimos dois anos”, assinalou.
Ainda segundo a Prefeitura, os dois condomínios terão unidades comerciais: 47 no Maristas e 16 no Bom Fim. Além disso, prometeu entregar, ainda este ano, duas praças no Maristas e anunciou a construção de uma Unidade Básica de Saúde dentro deste condomínio.
A briga dos moradores da Nazaré, desde que iniciou o processo de remoção, é uma luta pela manutenção do senso de comunidade e em defesa do modo de vida e de trabalho dessa comunidade, destaca Eduardo Osório, integrante da Coordenação Estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) no Rio Grande do Sul. “Porto Alegre tem vivido há bastante tempo o impacto de grandes obras. A obra de ampliação da pista do aeroporto provocou inicialmente a remoção quase completa da Vila Dique, que foi um processo bastante traumático. Com a privatização do aeroporto, a Nazaré passou a ser a bola da vez. É uma comunidade que surgiu a partir do fenômeno do êxodo rural, no final dos anos 60 e início dos 70, e que já reunia três ou quatro gerações vivendo ali. Era uma comunidade maior que a metade das cidades do interior do Estado, com uma população de mais de 8 mil pessoas, quase duas mil famílias”, assinala.
E isso ocorre, muitas vezes, acrescenta Eduardo, nas brechas do Plano Diretor e dos regramentos do Plano de Desenvolvimento Urbano, por se tratar de projetos de exceção. “Esse é o pano de fundo que está por trás da remoção da população da Vila Nazaré”, resume.
Cerca de 15% dos moradores da Nazaré (364 famílias) foram removidas para o condomínio Nosso Senhor do Bom Fim, localizado no bairro Sarandi, uma área que é próxima de onde a comunidade vivia (3 km de distância aproximadamente). O restante da população, porém, foi reassentada numa região localizada na fronteira de Porto Alegre com os municípios de Viamão e Alvorada, numa terreno dos Irmãos Maristas que era uma área de preservação ambiental.
Na avaliação do integrante do MTST, os apartamentos de 45 metros quadrados do Minha Casa Minha Vida, nos condomínios Nosso Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas, oferecidos para a população da Nazaré, não levaram em conta o modo de vida e o tipo de trabalho que muitas famílias tinham naquela comunidade. “Teve gente que ficou em melhor situação, é verdade, pois vivia em situação muito precária, mas muitas famílias perderam laços sociais e comunitários, bem como espaços de geração de trabalho e renda. E tudo isso ocorreu sem diálogo, em um processo de reassentamento forçado, em total desrespeito com a existência dessas famílias”.
Além disso, observa ainda Eduardo Osório, há problemas de construção nestes condomínios. “No meio do ano passado, em meio à pandemia, várias famílias tiveram que sair de seus apartamentos, porque a sua construção oferecia riscos. O processo de remoção não acaba quando a família sai do seu território. Tem que haver um acompanhamento para ver se ela consegue trabalhar, se vai ter acesso ao transporte público, à educação e à saúde. As famílias foram removidas da Nazaré sem que esses serviços estivessem garantidos”, critica. Eduardo Osório lamenta, por fim, a oportunidade perdida de ter aberto um outro caminho para o futuro da cidade:
“A Prefeitura de Porto Alegre pegou 1.500 habitações construídas com recursos federais, removeu as famílias e entregou para a Fraport, sendo que estava previsto no contrato que a empresa alemã deveria bancar os custos de reassentamento. Dava para ter construído casa para todo mundo no formato que as famílias queriam, com barracões de reciclagem, cocheiras para os animais e hortas urbanas. Se Porto Alegre tivesse uma mentalidade um pouco mais inclusiva, havia condições de ter sido criado um processo muito bonito e potente para o futuro da cidade”.
Isaura Aparecida Martins, moradora da Vila Nazaré por mais de 30 anos, militante do MTST e coordenadora da Cozinha Comunitária no Condomínio Irmãos Maristas, cita a falta de creches para as crianças e a distância entre a nova moradia e os locais de trabalho de muitos moradores como alguns dos principais problemas que a comunidade que vivia na Nazaré enfrenta hoje. No dia 17 de julho, Isaura foi convidada para falar sobre essa realidade na II Roda de Conversa promovida pela Marcha Mundial das Mulheres no Rio Grande do Sul, dentro da programação do Julho das Pretas. A fala de Isaura expõe as contradições e feridas que seguem abertas no processo de remoção da comunidade que perdeu seu território para o aeroporto.
“Nós não conseguimos colégio pras crianças. Só prometeram, mas não fizeram nada até agora. As mulheres não tem como trabalhar porque não tem creche. Como é que as mães vão deixar os filhos sozinhos em casa para ir trabalhar? É muito perigoso. Estamos lutando para que as mães possam ter a creche e alimentos para as crianças. Na Nazaré, mal ou bem, a gente tinha creche lá e as mães podiam trabalhar. As mães iam trabalhar sossegadas pois sabiam que as crianças estavam bem cuidadas. Não temos nada disso agora. Aqui a gente sai com medo”, relata.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, identificou uma série de violações de direitos envolvida em todo o processo de remoção das famílias da Vila Nazaré. Um dos problemas identificado pelo órgão coordenado pelo Procurador Enrico Rodrigues de Freitas foi que as famílias levadas para os condomínios Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas não receberam a posse do imóvel. Elas só terão o imóvel liberado em seu nome após um período de dez anos.
Nestes termos, assinala o procurador, elas perderam a casa que tinham na Nazaré e estão presas a um prazo de dez anos em um imóvel onde talvez nem possam ficar por questões relacionadas a trabalho, questões familiares e problemas de segurança. Segundo a Procuradoria, muitas pessoas foram ameaçadas ou mesmo expulsas por questões envolvendo guerra de facções do tráfico.
A falta de estrutura de saúde, de educação e de condições de trabalho e renda são outros problemas que preocupam o MP Federal. Cerca de 30% das famílias que viviam na Nazaré tiravam sua renda da reciclagem de resíduos, atividade que ocupava o pátio de suas casas. Elas foram levadas para morar em apartamentos de 40 metros quadrados, sem pátio, onde não podem seguir com essa atividade, o que significa perda de capacidade de gerar renda.
A ausência de pátio é um problema para quem trabalhava com reciclagem e para quem tinha animais de estimação. Há casos de famílias que tinham até oito cachorros e gatos, o que torna impraticável a mudança para um apartamento de pouco mais de 40 metros quadrados, sem pátio. Além disso, há a questão dos laços sociais e afetivos, que não costumam ser contabilizados por quem toma as decisões que implicam o deslocamento de populações. Muitas famílias residiam na Vila Nazaré há mais de 30 anos e, especialmente os mais idosos, enfrentam problemas de adaptação à nova realidade.
A Procuradoria moveu uma Ação Civil Pública defendendo a construção de uma solução habitacional coletiva para os moradores da Nazaré, que não signifique retrocesso em relação a outros direitos sociais, como trabalho, saúde, educação e segurança pública. Além disso, defendeu um processo transparente de desocupação e de tratamento isonômico a todos os moradores, sem a imposição de remoções forçadas que violassem direitos dos moradores.
Segundo o procurador Enrico de Freitas, o Ministério Público Federal seguirá acompanhando a situação dos moradores removidos no que se refere diretamente a aspectos federais, como o trabalho social, por exemplo. Outras questões, que dizem respeito a obrigações municipais e estaduais (como atendimento de saúde, educação e segurança), serão encaminhadas ao Ministério Público Estadual. A Ação Civil Pública movida pelo MPF também prosseguirá tramitando, pois tem um pedido específico de defesa patrimonial da União em relação à obrigação da concessionária de custear o reassentamento.
*A foto de abertura dessa reportagem é de César Lopes/PMPA
Créditos Sul21
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