Agricultores idosos lutando por nossas vidas (por Milton Pomar)
Milton Pomar (*)
“Uma voz contra o poder” (“Percy vs. Goliath”, ou simplesmente “Percy”) disponível na Netflix, é muito mais do que mais um filme sobre disputas judiciais, de uma pessoa comum contra grandes empresas e seus batalhões de advogados caríssimos. É isso também, mas a parte “tribunal” é a menos importante. O busílis (como se dizia antigamente) desse filme é a Vida: a luta pela Vida – da Humanidade e de toda a Natureza –, simbolizada pelo direito de quem planta poder produzir as sementes que plantará. Como pano de fundo, o direito das pessoas de produzir alimentos e outros produtos agrícolas livremente.
Esse filme (ver trailer abaixo) conta a história de uma luta iniciada há 25 anos no interior do Canadá, que ganhou o mundo, e infelizmente não acabará tão cedo. É a história também das convicções e de uma rara disposição de lutar por elas, de um casal de agricultores idosos, em comunidade rural majoritariamente idosa. Seguindo a tradição familiar, Percy e Louise Schmeiser selecionavam e guardavam sementes, por elas serem a garantia das safras seguintes. Tradição ameaçada em 1998, quando receberam intimação judicial, a partir de denúncia da Monsanto, multinacional dos Estados Unidos, sob acusação de terem utilizado a genética de sementes da empresa em 1997, sem pagamento de royalties, ferindo a lei de patentes.
A partir daí a vida do casal entra em um turbilhão, e Percy e Louise se veem obrigado a enfrentar, dos 67 aos 73 anos de idade (ambos nasceram em 1931), uma disputa feroz com a Monsanto, não apenas nos tribunais, mas também na mídia e na sua própria comunidade, porque a empresa desencadeou campanha de difamação contra Percy. Tanta violência objetivava acabar com o “mau exemplo” da agricultura familiar, da utilização de sementes próprias, ao invés de comprar sementes transgênicas das empresas de biotecnologia – adeptas da eugenia, que é oposta à biodiversidade, princípio básico da Natureza.
Expressa na reivindicação do direito de agricultores e agricultoras produzirem suas sementes, a luta pela Vida vai tomando conta da história: após perderem na 1ª e 2ª instâncias, Percy e Louise decidem ir à Suprema Corte, em um tudo ou nada na luta contra a megaempresa de dezenas de bilhões de dólares de faturamento, que impõe a compra de sementes de laboratório, as OGM (organismo geneticamente modificado), conhecidas como “transgênicas”. Contribuiu para essa decisão do casal a viagem de Percy à Índia, para participar de um evento sobre o tema, no qual ficou muito impressionado com a dramática situação dos agricultores indianos, e com o suicídio de milhares deles, por causa de dívidas resultantes do modelo de agricultura com o “pacote” vendido por empresas de sementes “melhoradas”, agrotóxicos etc.
A decisão da Suprema Corte do Canadá sobre o caso, em 21 de maio de 2004, deu ganho de causa para a Monsanto por 5 a 4, no direito da patente, mas liberou Percy e Louise de pagamento para a empresa, por entender que não haviam utilizado as sementes transgênicas de maneira proposital ou lucrado com o seu uso.
Essa vitória judicial esdrúxula evidenciou os absurdos da lei das patentes, por permitir que as empresas contaminem lavouras com suas sementes transgênicas e ainda recebam por isso, e proibir milhões de agricultores de protestarem por suas lavouras serem contaminadas e ainda terem que pagar por isso. E escancarou a prática dessas empresas, que produzem variedades de plantas resistentes a herbicidas (como o Roundup, da Monsanto), obrigando quem utiliza um produto a comprar o outro da mesma empresa.
Passados 18 anos dessa decisão histórica da Suprema Corte do Canadá, o que aconteceu nesse período com as grandes questões envolvidas na disputa? – Percy e Louise continuaram lutando pela causa que abraçaram. Ganharam o Prêmio Nobel alternativo em 2007, e seguiram ativistas até a morte de Percy, em 13 de outubro de 2020, aos 89 anos de idade, poucos dias antes do início dos protestos de mais de 250 milhões de agricultores na Índia, contra as alterações legais propostas pelo governo do país, de ampliação do modelo da “agricultura industrial”.
Comprada pela Bayer em 2018, a Monsanto levou consigo os 125 mil processos movidos contra ela por agricultores norte-americanos, o que obrigou a empresa alemã a propor, em 2020, acordo de indenizações totalizando US$11 bilhões, sem reconhecimento de “culpa”.
Seguindo a dinâmica dos anos 1990, das fusões de empresas em todos os setores, encolheu a quantidade de indústrias de sementes e agrotóxicos, resultando em concentração inaceitável até para a lógica da concorrência e do livre mercado – em 2016, dez empresas vendiam 75% das sementes consumidas no mundo; em 2022, três empresas dominam 70% desse mercado: a SinoChem/Syngenta (China), Bayer/Monsanto (Alemanha) e DuPont/Dow (Estados Unidos).
Tanto dinheiro concentrado se traduz em muito poder. No caso, poder econômico, político, ideológico, jurídico, midiático. Poder de vida e de morte. Como as sementes de laboratório dependem da “proteção” dos agrotóxicos, e o impacto deles no ambiente é devastador – a morte de bilhões de abelhas e peixes é apenas a sua parte mais visível –, as empresas do setor estão em “guerra permanente”, para garantir os lucros no mercado de mais de US$100 bilhões anuais.
Ao contrário do discurso de que os transgênicos são a solução para acabar com a fome, esse modelo de agricultura de alta tecnologia resulta no encarecimento dos alimentos, afastando-os das 3,3 bilhões de pessoas no mundo com pouco dinheiro (US$5,50 por dia) – das quais 1,8 bilhão com US$3,20 por dia, e 656 milhões na miséria, com US$1,90 ou menos por dia. Custa mais porque depende de insumos industriais, e, por isso, é de alto risco, porque os preços costumam cair quando sobem as quantidades produzidas, o sucesso em uma ponta é o fracasso na outra, e aí quem é pequeno em geral quebra. A maior prova da inviabilidade desse modelo é a Índia, onde de seis mil a 18 mil agricultores endividados se suicidam todos os anos, desde a introdução do “pacote tecnológico” no país.
(*) Geógrafo e mestre em Políticas Públicas
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